No dia 23 de Outubro de 2019, as televisões, os rádios e as redações encheram-se de coragem para anunciar: 39 migrantes, oriundos do Vietname, foram encontrados mortos num camião em plena Inglaterra. Sim, em plena Europa, a terra das oportunidades e da “civilização”.
Nesta situação específica, há que ter em conta que estes familiares e amigos, ao iniciarem o seu processo de luto, deparam-se inevitavelmente com a perda traumática dos seus entes queridos - a forma brusca e incompreensível como perderam aqueles que amavam. Aliás, muitos deles não sabiam sequer que estes tinham embarcado na busca e uma vida melhor.
É então possível fazer o luto? A resposta é: Sim, sem esquecer que provavelmente vamos estar perante Lutos Complicados.
No nosso dia-a-dia habituamo-nos a acreditar que “a mim, nunca nada de mal me acontecerá” e se por um lado há uma vertente fantasiosa nesta maneira de pensar, também é verdade que é esta crença que, em certa medida, nos permite sair de casa todos os dias sem o receio de que algo de mau nos aconteça. É, portanto, uma ideia defensiva, que nos ajuda a acalmar a angústia associada à morte e à nossa vulnerabilidade. Quando há um episódio traumático (como o episódio de Essex) que vem mostrar que essa crença é incongruente, o mesmo torna-se incompreensível e inexplicável.
É aqui que tudo se torna mais difícil, na medida em que o Mundo se torna, aos olhos destas pessoas, mais inseguro e desorganizado, existe uma sensação de ameaça à integridade física e psicológica e o sentimento de desamparo instala-se.
Perante um episódio traumático, podemos reagir de formas muito diferentes, embora sejam frequentes as recordações repetitivas e intrusivas do evento, assim como sonhos recorrentes; comportamentos ou emoções como se o evento traumático estivesse a acontecer naquele momento; mal-estar psicológico perante situações que lembrem o episódio traumático; irritabilidade, entre outras. Não é certo que uma perda traumática dê origem a um Luto Traumático, mas não é raro que tal aconteça. O Luto Traumático caracteriza-se pela existência de memórias intrusivas sobre o trauma (que neste caso poderá ser imagem intrusivas sobre como ocorreu a morte daqueles que estavam dentro do camião), pelo sentimento de que a vida é vazia e sem significado, pelo sentimento de apatia ou pelo facto de as pessoas sentirem que parte de si morreu.
Por outro lado, importa falarmos acerca dos rituais culturais que estão associados aos Processos de luto. Os rituais fúnebres, como por exemplo o velório ou o funeral têm demonstrado uma importância fulcral no desenvolvimento do Processo de Luto. Claro que estes rituais variam de cultura para cultura, de país para país e até, às vezes, de cidade para cidade. O que importa salientar é que eles são importantes na medida que facilitam a expressão da dor perante a perda de alguém que nos é muito querido. Num país onde a maioria da população pertence a uma religião que tem por base o budismo, o tempo entre a morte e a cremação é uma altura muito importante nos rituais fúnebres, onde os crentes acreditam que o falecido pode ainda ganhar méritos antes de chegar ao Nirvana, podendo, posteriormente, reencarnar numa condição mais favorável. Assim, entre a morte e a cremação, há uma série de rituais, como por exemplo, a recitação de textos sagrados.
O facto dos familiares e amigos das vítimas não poderem, para já, realizar estes rituais, pode obviamente, vir a interferir com o Processo de Luto. Mas também é importante lembrarmo-nos que o luto não começa só após os rituais fúnebres. Ele começa antes, a partir do momento em que a pessoa sabe que sofreu a perda. A resposta mantém-se: sim, é possível fazer o luto. Não só porque cada pessoa é diferente e, portanto, tem formas e estratégias de reagir diferentes, mas também porque embora estejamos perante fatores de risco que podem comprometer os Processos de Luto destas pessoas, a verdade é que nenhuma condição define por si só uma condição patológica.
Catarina Bragança Nobre
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